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Avenida Inatingível



Da cor de uma memória
Indefinida e impossível
Abre-se no longe a estreita porta
De uma avenida inatingível

É um perfume inebriante
Adocicado de penumbra
Flutuando entre a névoa
Repleto de imprevisto e aventura

Quando no vácuo alucino
Para lá do limite real
Vejo um semblante de fascínio
Entre as árvores da marginal

É a tua fotografia
Dentro de um sonho que já tive
Divagando na noite fria
Foste a lanterna do meu caminho

Contei gestos na incerteza
Dessas que toda a gente tem
E em tantos versos cheios de mundo
Foi só em ti que me decifrei

E fiquei longe na madrugada
Entre o rochedo e a maresia
Dedilhando na guitarra
Fluxos breves de fantasia.

Fiquei a chamar por lembranças
Tão perto de lhes tocar
E um respirar tão emergente, próximo...
De explosivo o latejar...

Numa espécie de abrigo secreto
Escondi um diário precioso
Adormeci como um menino pequeno
Extasiado pelas estrelas do céu

Num encantamento supremo
Em silêncios sublimes de grito
Visitei de novo o uivo do lobo e transmutando o vento
Quase me destilei em ironia

É que no espectro colorido de uma memória
Inesquecível, luminosa e febril
Cabe sempre o espaço aberto do futuro
De uma estrada com o destino por definir.

Abre-se agora essa porta estreita
Indefinida e impossível
De onde se vê o horizonte inteiro
Para a avenida inatingível.

Caminhos...



Andei…
Andei por aí
Pelos passeios cinzentos
Caminhei
Com traços de vento
À deriva
Com o perigo a roçar os dentes
E os ouvidos zumbindo
Como se mil enxames me acompanhassem
E eu não entendia…!

Divaguei
As roupas que usava eram trapos pesados
E pedaços caíam enquanto andava
Trapos… pesados…
Densos… rasgados…
Eu andava e caíam

Peças… partes de mim que desapareciam
Eclipse de silêncios
Como se todo eu fosse uma estátua de cinza
Ou um pedaço de areal que se desfaz
Com a chegada da maré…
Atravessado pelos raios da manhã luminosa…

Em todas as paisagens
Abracei o nascer do Sol
Glorifiquei a saudade que já tinha da saudade que tive
Pensei…
E ao pensar… chorei
Sem entender…

Voltando-me para todas as direcções
Bússola de olhares que transcende o espaço da geografia terrena
Soltei palavras que acompanharam o homem sozinho
E as notas musicais que nasciam do meu piano interior
Mudaram rostos, sorrisos que diziam sons
Sons que se pareciam com risos
Fragmentos de um amor feito ao luar
Grifos esvoaçando em busca da carne fresca
E os pombos que dormiam em cima de pipocas
No calor das grelhas de ventilação do esgoto
E ali, um pouco mais à frente
Poetas que abriam folhas
Livros em cima de lagos cheios de cardumes de sonhos
Visões gelatinosas de metais feitos de solidão
E um cocktail de liberdade
Explosivo para quem beber
E o aviso… Esse aviso de advertência
Cuidado! Pode ferir até morrer…!
E eu não entendia…

Entre esquinas e arcos em ruínas
Dentro das paredes do castelo
Ouvi uma melodia e segui o som
Pé ante pé
Instante a instante segui o rasto ainda quente
E uma questão subliminar sempre presente
Quem era eu?

De repente,
Estrondo, maquinaria pesada que trabalha a produzir feitiços em segunda-mão sem manual de instruções
Pessoas que tinham nomes de verbos
E verbos que não passavam agora de nomes imóveis nas placas enferrujadas das ruas onde circulavam pedaços de papel… rasgados…
Linhas de algodão doce ligavam os cabelos de mulheres que desciam suspensas no ar, em guarda-chuvas voltados ao contrário, semi-nuas, semi-vestidas, com patins nos sapatos e lágrimas a escorrer pelo peito…

Nada fazia sentido...
E cortinas bailavam em janelas imaginárias
Prédios com fachadas invisíveis
Escadas feitas com palavras
Torres suspensas
Relógios que eram espelhos
E pessoas que no lugar do coração tinham pianos de cauda, abertos, prontos a sentir a imensidão…
E duas nuvens no sítio dos olhos
E era aquilo tudo assim... sem mais nada...
E pronto…
Só via a solidão em mim…

Nesses caminhos
Percorri ruas
Tracei sentidos inversos
Subi e desci escadas
Que terminavam em colinas de onde se via até onde o sonho de cada um alcança!
Pisei pedras que fugiam dos meus pés
Encontrei cães com gravatas e fato
E vi crianças que ladravam na esquina
Correndo contentes atrás do gato

Conheci o odor da gota da chuva
E o sabor de Deus num pequeno pedaço de chocolate que vi caído num caixote do lixo
Quem sabe, ainda metade, pra comer ainda deu …
Que estava mais limpo o chocolate
O sujo era eu
Mas eu ainda não sabia…

Percorri candeeiros
Com luzes que piscavam ao ritmo dos meus passos
Por vezes, desejei que a vida fosse como um filme
Com uma banda sonora permanente
Inspirando-nos a agir
Abraçando-nos quando é chegado o instante da dor
Ou de nos acalmar perante o nervosismo
Como uma mãe que nos conforta
Crianças… nós… que fomos
Além da curva… onde passámos…

Atravessei pontes que ligavam almas distantes
Derrubei muros que isolavam outros como eu
Entre planaltos nus e planícies secas
Montanhas nevadas e areais quentes
Procurei tudo o que desejei..

Lambi o orvalho que caía da folha da monção
E corri pelo bosque na noite escura
A fugir de mim…
Sem saber ao certo para quê

Em algum lugar oculto
Decidi aprender a voar com alguém que conheci
Com um pano velho, um canavial perto e muita imaginação
Fiz umas asas daquelas que duram mais tempo
Daquelas asas que nos levam onde queremos
Vencendo o tempo, escapando-lhe, iludindo-o…
E pensar que bastou apenas um gesto certo e tão simples da palma da mão
Para ir longe… tão longe… como nunca tinha ido…
No horizonte…
Em direcção ao Sol….

A seguir...
Fechei os olhos...
Caí num empedrado macio
Rabiscado com palavras cheias de negro
Era talvez a elegia
De um ser ainda vivo
Que não se entendia.

Seria esse o desígnio que me tinha trazido ali?
Descobrir o caminho certo para me afastar de mim?

Andei
Sim, eu caminhei à deriva por aí
Por passeios cheios de gente como eu
Como tu…

Falei com desconhecidos
Que nunca me entenderam
E às vezes, estrangeiro de mim mesmo
Ficava a olhar constrangido para uma foto de criança
E não me reconheci...

Foi aí que gritei!
Gritei com o grito dos que perderam
E agitei-me desesperado, longe de casa…
Percebi que o fim estava próximo...

Pensei
Quando toda esta viagem terminar
Com traços de vento entre dentes a morder o perigo
E os ouvidos fascinados com a orquestra do mundo
Como se mil músicos me acompanhassem
Só quero sentir de novo os cheiros familiares que conheço…

Só quero sentir o abraço do meu espaço
E contar-te tudo aquilo que vi e falar-te sobre o que aprendi
Porque só longe de casa é que entendi
Que a felicidade plena não dependia de mim
Precisa de ser partilhada…
Para existir e acontecer no seu esplendor…

Seria esse o desígnio que me tinha trazido ali?
Descobrir os caminhos certos para me aproximar de mim.